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"20 dias em Mariupol": muito além do que mostra o noticiário

11 de março de 2024

Vencedor do Oscar 2024 de melhor documentário, filme de 95 minutos do diretor ucraniano Mstyslav Chernov deixa explícito as atrocidades cometidas pela Rússia contra civis na Ucrânia e aborda "guerra de informação russa".

Mulher grávida carregada em uma maca após um míssil russo atingir uma maternidade em Mariupol
Imagem de mulher grávida carregada em maca após um míssil russo atingir maternidade em Mariupol rodou o mundoFoto: Evgeniy Maloletka/AP/picture alliance

Uma mulher grávida carregada em uma maca após um míssil russo atingir uma maternidade: a imagem aterradora do cerco russo à cidade ucraniana de Mariupol rodou o mundo.

A foto existe graças aos correspondentes de guerra ucranianos que trabalhavam para a agência de notícias Associated Press e que permaneceram na cidade enquanto ela era cercada e extensivamente bombardeada por tropas russas.

Eles integravam a última equipe de jornalistas internacionais no local cobrindo os primeiros 20 dias do cerco que deixou a cidade em ruínas.

Os jornalistas ucranianos Mstyslav Chernov, Evgeniy Maloletka, Vasilisa Stepanenko e Lori Hinnant venceram o Prêmio Pulitzer de Jornalismo de Serviço Público, além de vários outro – incluindo o Prêmio Deutsche Welle para a Liberdade de Expressão.

Mstyslav Chernov decidiu então transformar o material em vídeo no documentário 20 dias em Mariupol,  que foi agraciado com a estatueta de melhor documentário no Oscar 2024, em cerimônia na noite deste domingo (10/03).

O filme, que também venceu o prêmio de documentário internacional do festival de Sundance, estreou na Alemanha em novembro de 2023 no Festival de Cinema de Direitos Humanos, quando a DW conversou com o diretor.

O documentário vai muito além das notícias e utiliza o material da Associated Press que foi amplamente difundido no mundo todo.

"Essa foi uma das muitas razões pelas quais o filme precisava ser feito", disse Chernov. "A impressão que se tem das reportagens de um ou dois minutos de duração no noticiário é bem diferente do que se sente e se compreende quando se assiste 95 minutos".

Para ele, porém, a duração ainda "não é suficiente para falar sobre todas as tragédias que ocorreram em Mariupol".

"Mesmo as 30 horas [de vídeo] que eu consegui extrair da cidade não são suficientes", destaca.

Cidade moderna destruída pela Rússia

O total de ucranianos mortos no cerco a Mariupol varia bastante, dependendo da fonte. O filme menciona a contagem ucraniana de mais de 25 mil vítimas. Segundo estimativas da ONU, 90% dos edifícios de apartamentos e 60% das casas foram danificadas.

De acordo com Chernov, a Rússia demole edifícios destruídos e ergue outros em seu lugar "apenas para gerar imagens positivas", eliminado, assim, os locais onde seria possível determinar a escala de seus crimes de guerra. "A cada dia que passa, há menos evidências", afirma.

20 dias em Mariupol mostra não apenas como uma moderna cidade europeia foi bombardeada até ser transformada em ruínas, como crianças morreram vítimas de mísseis e como foi necessário criar covas coletivas para enterrar os milhares de corpos, mas também como a Rússia retratou os acontecimentos.

Mstyslav Chernov e sua equipe recebem Oscar de melhor documentário por "20 dias em Mariupol"Foto: Avalon/Photoshot/picture alliance

No início do filme, o presidente russo, Vladimir Putin , aparece afirmando, em um discurso transmitido em rede nacional durante o anúncio da invasão, que sua "operação militar especial" – expressão utilizada por Moscou ao se referir à guerra na Ucrânia – é absolutamente necessária, porque, sem ela, a Rússia teria sido atacada primeiro.

Como diz sarcasticamente um morador de Mariupol no filme, o líder russo estava sendo "lindamente enganoso" em seu discurso.

Esse lembrete de como todo o conflito se baseia nas mentiras de Putin torna as imagens do impacto sangrento da guerra ainda mais difíceis de assistir.

Enquanto a equipe médica do hospital onde estavam baseados os jornalistas da AP tentava desesperadamente reavivar uma criança de colo ferida pela artilharia russa, ou fazer uma cirurgia em um adolescente cujas pernas foram destroçadas enquanto ele jogava futebol, o cirurgião-chefe encorajava Chernov a filmar todos os detalhes.

"Mostre àquele bastardo do Putin os olhos desta criança", gritava. "Mostre o que esses desgraçados estão fazendo com os civis!".

Como diz Chernov na narração do filme: "é doloroso de assistir, mas tem de ser doloroso de assistir".

Retrato da "guerra de informação" global

Os repórteres ucranianos arriscaram suas vidas para conseguir enviar seus relatos à imprensa ocidental, enquanto tentavam encontrar lugares onde a conexão à internet ainda estivesse disponível. A Rússia, no entanto, se apressou em rotular as imagens como "notícias falsas".

Tão logo a imagem da gestante ferida foi divulgada, a embaixada russa em Londres afirmou em postagem na rede social X (antigo Twitter) tratar-se de uma atriz.

O documentário também mostra um jornalista britânico confrontando o embaixador russo na ONU, Vasily Nebenzya, com as imagens coletadas por Chernov. O diplomata minimiza as questões sobre a matança de bebês como sendo parte da "guerra de informação".

"É impossível contar de modo completo a história de Mariupol sem falar sobre como a desinformação e a falsa interpretação estão a ela associadas", disse Chernov à DW.

Ao comentar sobre o tema da cobertura de guerra, o diretor sublinha que seu filme não é sobre jornalistas. "É a história do meu povo, de quem foi encurralado, morto ou perdeu sua casa", afirmou o ucraniano nascido em Kharkiv, outra cidade duramente atingida pelos russos.

"20 dias em Mariupol" relata como notícias falsas prejudicam trabalho de jornalistas na cobertura da guerraFoto: 20 Days in Mariupol/HRFFB

20 dias em Mariupol também é a crônica de um fenômeno da era moderna que prejudica o trabalho de jornalistas mundo afora, enquanto as notícias falsas contaminam a cobertura de todos os temas controversos – como é o caso atual da guerra entre Israel o grupo extremista Hamas.

Atenção global voltada para Gaza

Ao ser perguntado se ele se preocupa com a possibilidade de o mundo se esquecer dos ucranianos enquanto se desenrola o conflito no Oriente Médio, o correspondente de guerra observa que "a mudança de atenção da mídia era inevitável".

"Nós trabalhamos com notícias. Sabemos que essa atenção é desviada e depois volta", destaca, lembrando a conexão geopolítica dos dois eventos.

Chernov acrescenta que parte da sociedade europeia se engana ao acreditar que se o envio de armas à Ucrânia fosse suspenso, a guerra terminaria e as negociações de paz finalmente aconteceriam.

"Não acho que uma mudança no apoio internacional à Ucrânia possa parar a luta. Os ucranianos estão lutando por sua sobrevivência. Isso significaria apenas que mais ucranianos iriam morrer".

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