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"Colapso do regime de Putin seria pesadelo para a China"

26 de março de 2023

As relações entre Pequim e Moscou são marcadas por um vínculo especial entre seus líderes. Em entrevista, cientista político decodifica os laços subestimados entre os dois autocratas e a interdependência que os une.

Bonecas de madeira tradicionais russas, conhecidas como matrioscas, retratando o presidente chinês, Xi Jinping, e o presidente russo, Vladimir Putin.
Xi e Putin como matrioscas: o que se esconde por dentro?Foto: Natalia Kolesnikova/AFP/Getty Images

O cientista político Dirk Schmidt é professor de política e economia chinesa da Universidade de Trier. Em entrevista à DW, o especialista fala dos laços e dos pontos biográficos em comum unindo os líderes de China e Rússia em sua propalada "parceria sem fronteiras", a qual foi enfatizada mais uma vez em recente visita do governante chinês a Moscou.

Schmidt diz que Pequim considera a Rússia necessária e crucial numa ordem mundial multipolar voltada contra os EUA e que as relações entre os dois países é nutrida pelos próprios interesses de ambos os lados. "A China está claramente seguindo seus próprios interesses e usa agora a situação na Rússia para obter gás, petróleo, carvão e recursos em geral a preços baratos", explica o politólogo.

O especialista ressalta que Pequim tem "enorme interesse" de que a guerra na Ucrânia não termine em desvantagem para os russos. "Do ponto de vista chinês, seria um cenário de pesadelo absoluto se o governo de Putin caísse e, numa situação hipotética, a Rússia se juntasse ao Ocidente", avalia.

DW: Professor Schmidt, pouco antes da invasão russa à Ucrânia, há mais de um ano, Pequim e Moscou já haviam concordado com uma "parceria sem fronteiras". Recentemente, tais laços de amizade foram enfatizados mais uma vez durante a visita oficial a Moscou do chefe de Estado e líder do partido comunista da China, Xi Jinping. Até que ponto essa tão propalada amizade entre dois Estados é uma amizade entre dois indivíduos?

Dirk Schmidt: Acredito que a importância da amizade pessoal entre Putin e Xi é subestimada. A relação entre os dois países é moldada pelas convicções pessoais de seus líderes. Ambos estão ligados por uma proximidade particular, diria até amizade. Este mesmo termo foi inclusive usado durante a visita oficial. Quando eles se sentaram um de frente ao outro, Xi Jinping, que é certamente alheio ao sentimentalismo, colocou da seguinte forma: "Presidente Putin, meu grande amigo." Foi exatamente isso que ele disse em chinês. Trata-se de uma qualidade especial e não apenas uma frase vazia.

Dirk Schmidt é especializado em China e leciona na Universidade de Trier, AlemanhaFoto: Marco Urban

Em sua primeira viagem ao exterior como chefe de Estado em 2013, Xi Jinping foi a Moscou. Já naquela época, Xi Jinping disse a Putin acreditar que eles tinham um "caráter semelhante". Ele chegou a falar inclusive de uma espécie de alma gêmea. De onde vem isso?

Existem alguns paralelos em suas biografias: ambos são da mesma geração, com apenas alguns meses de diferença de idade. Ambos cresceram num sistema marxista-leninista. Ou seja, Putin entende a mentalidade de Xi na estrutura do Partido Comunista.

Por outro lado, Xi Jinping tem uma compreensão da história russa, algo que Putin sempre promove. Xi é filho de um dos colaboradores mais próximos de Mao [Tsé-tung]. Seu pai, Xi Zhongxun, era um dos principais funcionários no âmbito das relações com a Rússia. Em entrevistas, Xi relatou repetidas vezes também ter sido influenciado pela literatura russa quando criança, e que seu pai lhe trazia presentes da Rússia. Além disso, o pai de Xi Jinping, considerado extremamente pró-Rússia, foi perseguido como espião russo sob o regime de Mao na década de 1960.

Ambos também compartilham a experiência do declínio do sistema autocrático na União Soviética (URSS). Xi Jinping sempre criticou o colapso da URSS, desde o início de seu mandato até os dias atuais. Putin e Xi têm uma visão idêntica sobre o fim da URSS. Do ponto de vista tanto de Putin como de Xi, essa queda se deve à incompetência do ex-líder soviético Mikhail Gorbachov.

Outro aspecto em que ambos compartilham uma perspectiva semelhante é a preocupação com as chamadas "revoluções coloridas" trazidas de fora para seus respectivos sistemas, seja dos EUA ou do Ocidente como um todo.

Xi e Putin: dois vizinhos, dois chefes de Estado, dois autocratas, dois amigosFoto: Sergei Karpukhin/Sputnik/REUTERS

Desde 2013, Xi e Putin já se encontraram pelo menos 40 vezes. Como o senhor observa o desenvolvimento deste relacionamento ao longo de encontros tão frequentes?

Ele se aprofundou. Fala-se muito também em trocas de presentes nessas visitas oficiais. Sabemos que em várias delas, Xi Jinping e Putin se encontraram sozinhos. Numa dessas ocasiões, em 2019, no contexto de uma reunião da Organização para Cooperação de Xangai, Putin parabenizou Xi Jinping pelo seu aniversário e lhe presenteou com bolo e sorvete. E segundo seus círculos mais próximos, eles também prestaram visitas um ao outro em seus respectivos quartos de hotel e conversaram em particular. Isso é extremamente raro em tal contexto. Essas pessoas são muito desconfiadas. O fato de terem cultivado tanta proximidade e intimidade nos últimos dez anos é algo especial.

Olhemos novamente para esses dois países, cujos autocratas se dizem irmãos. Em chinês, há uma hierarquia no termo irmão: existe o irmão mais velho, "gege", e o mais novo, "didi". Quando Xi e Putin eram jovens, a URSS era claramente o "irmão mais velho". Como é essa relação de fraternidade entre Xi e Putin nos dias atuais?

Vemos uma inversão da relação anterior. Nesse meio tempo, a Rússia se tornou claramente um sócio minoritário, um apêndice. Isso mexe com o brio russo, mas é a verdade: a Rússia está isolada e a China é o único país importante que está a seu lado, que também a apoia. Isso só enquanto esse apoio não implicar sanções do Ocidente, é claro.

Li um comentário de um analista russo que dizia que a Rússia vai "acabar virando uma colônia de matérias-primas". Trata-se de uma afirmação muito dura, mas há um fundo de verdade nela. Hoje lemos, por exemplo, que o país está cada vez mais se valendo do uso da moeda chinesa, o renminbi, para conduzir o comércio, e até mesmo para processar pagamentos dentro da própria Rússia. Isso mostra claramente a discrepância entre os dois lados.

Agora olhemos para esta estreita relação pessoal entre Xi e Putin, a prometida "parceria sem fronteiras" entre os dois países, segundo a qual não pode haver "áreas proibidas de cooperação". O que isso significa no caso de umeventual apoio chinês à Rússia na guerra de agressão contra a Ucrânia?

Em primeiro lugar, é surpreendente que a terminologia "parceria sem fronteiras" tenha sido relativamente pouco utilizada. Não acho que esse termo tenha surgido nos últimos dois ou três dias. Do ponto de vista chinês, é claro que eles não estão acorrentados incondicionalmente à Rússia, mas querem, sim, manter a flexibilidade. Um princípio central da política externa chinesa é a necessidade de flexibilidade tática.

O rumo estratégico é muito claro: a Rússia é necessária e crucial numa ordem mundial multipolar voltada contra os EUA. Neste ponto, eles estão próximos um do outro. Fora isso, a China está claramente seguindo seus próprios interesses e usa agora a situação na Rússia para obter gás, petróleo, carvão e recursos em geral a preços baratos.

Nesse sentido, a China tem um enorme interesse não necessariamente na vitória da Rússia, mas que, de alguma forma, a guerra não termine em desvantagem para os russos. A China precisa da Rússia. A China compartilha uma fronteira de 4,2 mil quilômetros com a Rússia. Do ponto de vista chinês, seria um cenário de pesadelo absoluto se o governo de Putin caísse e, numa situação hipotética, a Rússia se juntasse ao Ocidente. Da perspectiva chinesa, surgiria assim um adversário diretamente ao longo desses 4,2 mil quilômetros da fronteira norte. Trata-se de um problema de política de segurança muito evidente.

A "Ponte da Amizade" entre a China e a Coreia do NorteFoto: Kyodo/picture alliance

Tem havido muita especulação sobre entregas de armas

Eu não descartaria isso. Só a China seria capaz de fazê-la de forma escusa. Por exemplo, ao fazer entregas para a Rússia através de países terceiros, via Turquia, Azerbaijão ou Emirados. Já houve relatos nesse sentido.

A China é extremamente habilidosa para fugir das sanções. Um exemplo disso é o apoio de longa data à Coreia do Norte. Não devemos subestimar a China. No final, se a situação realmente apertar, acredito que a China certamente usaria todos os meios disponíveis para garantir a sobrevivência da Rússia sob Putin.

 

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